A Transfiguração Pela Poesia
[Dedico este texto a todos as almas sofridas pela ignorância da guerra, da fome, e da tragédia.]
Ayres Filho
[Para ler meditando...]
Creio firmemente que o
confinamento em si mesmo, imposto a toda uma legião de criaturas pela
guerra, é dinamite se acumu lando no subsolo das almas para as explosões da paz. No seio mesmo da tragédia sinto o fermento da meditação crescer. [...] Pois na luta onde todos foram soldados - a minoria nos campos de batalha, a maioria nas
solidões do próprio eu, lutando a favor da
liberdade e contra ela, a favor da
vida e contra ela - os
sobrevi ventes, de corpo e espírito, e os que aguardaram em
lágrimas a sua chegada imprevisível, hão de se estreitar num
abraço tão apertado que nem a
morte os poderá separar. E o
pranto que chorarem juntos há de ser água para lavar dos
corações o ódio e das
inteligências o mal-entendido.
Porque haverá nos olhos, na boca, nas mãos, nos pés de todos uma
ânsia tão intensa de
repouso e de
poesia, que a
paixão os conduzirá para os mesmos caminhos, os únicos que fazem a vida digna: os da
ternura e do
despojamento. Tenho que
só a poesia poderá salvar o mundo da paz política que se anuncia - a poesia que é carne, a carne dos pobres humilhados, das mulheres que sofrem, das crianças com frio, a carne das auroras e dos poentes sobre o chão ainda aberto em crateras.
Só a poesia pode salvar o mundo de amanhã. E como que é possível senti-la
fervilhando em larvas numa terra prenhe de
cadáveres. Em quantos
jovens corações, neste momento mesmo, já não terá
vibrado o pasmo da sua obscura
presença? Em quantos rostos não se terá ela plantado, amarga, incerta esperança de
sobrevivência? Em quantas
duras almas já não terá filtrado a sua claridade indecisa? Que langor, que anseio de voltar, que
desejo de fruir, de
fecundar, de
pertencer, já não terá ela arrancado de tantos corpos parados no
antemomento do ataque, na
hora da derrota, no
instante preciso da morte? E a quantos seres
martirizados de espera, de
resignação, de
revolta já não terão chegado as ondas do seu misterioso
apelo?
Sofre ainda o mundo de
tirania e de
opressão, da
riqueza de alguns para a
miséria de muitos, da
arrogância de certos para a
humilhação de quase todos. Sofre o mundo da transformação dos
pés em borracha, das
pernas em couro, do
corpo em pano e da
cabeça em aço. Sofre o mundo da transformação das mãos em
instrumentos de castigo e em
símbolos de força. Sofre o mundo da transformação da
pá em fuzil, do
arado em tanque de guerra, da
imagem do semeador que semeia na do
autômato com seu lança-chamas, de cuja sementeira brotam
solidões.
A esse mundo, só a poesia poderá salvar, e a humildade diante da sua voz. Parece tão
vago, tão
gratuito, e no entanto eu o sinto de maneira
tão fatal! Não se trata de
desencantá-la, porque creio na sua aparição
espontânea,
inevitável. Surgirá de vozes jovens fazendo ciranda em torno de um
mundo caduco; de
vozes de homens simples, operários, artistas, lavradores, marítimos, brancos e negros, cantando o seu
labor de edificar, criar, plantar, navegar um
novo mundo; de
vozes de mães, esposas, amantes e filhas, procriando, lidando, fazendo amor, drama, perdão. E contra essas vozes não prevalecerão as vozes
ásperas de mando dos senhores nem as vozes
soberbas das elites. Porque a
poesia ácida lhes terá
corroído as roupas. E o povo então poderá
cantar seus próprios cantos, porque os
poetas serão em maior número e a
poesia há de velar.
* Primeira crônica do A., publicada em "A Manhã", 1946.
in
Para viver um grande amor (crônicas e poemas)
in Poesia completa e prosa:
"Para viver um grande amor"
by
©º°¨[Vinícius de Moraes]¨°º©
Escritor sugerido por
Simone