Parte I
Janeiro 2003, Suíça - A
ATTAC, organização da sociedade civil que pleiteia a taxação de operações financeiras para aplicação na redução das desigualdades sociais no mundo, lidera manifestação contra a
Nestlé, multinacional com sede na Suíça, contra a privatização de uma fonte na cidade de Bevaix. As leis suíças deram razão aos manifestantes: a água é considerada bem comum, inalienável e não comercializável. A água é patrimônio da humanidade, lá na Suíça.
Maio 2003, Brasil - O
Movimento de Cidadania pelas Águas, organização espontânea da sociedade civil da cidade sul-mineira de São Lourenço, que pleiteia, entre outras coisas, o controle público sobre os seus recursos hídricos minerais, lidera manifestação contra a
Empresa de Águas de São Lourenço, pertencente à multinacional suíça
Nestlé, pelo fim da superexploração das águas minerais que garantem o turismo e a economia da cidade.
Na Suíça, a água é bem comum. Em São Lourenço, cidade da ex-colônia Brasil, situada na ex-província de Minas, fornecedora do ouro que, junto com a prata andina, constituiu uma das bases da Revolução Industrial européia,
a água é da multinacional Nestlé. O ouro acabou, mas as minas continuam generosas. A julgar pela voracidade da
Nestlé, em breve terão o destino do ouro:
a extinção. Mas a Nestlé já extinguiu coisas mais importantes. Fazem parte dos clássicos da pediatria os esforços da empresa em apresentar seu leite de vaca em pó como alternativa melhorada para o leite materno. Ao introduzir o seu leite Ninho na África, por exemplo, as imagens que o recomendavam eram de moças vestidas como enfermeiras, e o leite era associado à idéia de medicamento, com largas vantagens sobre o leite materno. O consumo desse produto, diluído em razão do alto custo, nem sempre manipulado com higiene e água pura, transformou-se num vetor para a morte de bebês, privados da imunização que o então desvalorizado leite da mãe proporciona.
Lula tem tanta vontade de que o
Fome Zero dê certo que aceitou milhões de latas de leite em pó da
Nestlé, levantadas em milionária campanha de marketing com
Faustões & Gugus no apoio. Mas o governo esqueceu-se de (ou ainda não percebeu) que a revitalização da economia que elimina a fome passa pela valorização dos pequenos produtores, inclusive os de leite, que as multinacionais como a
Nestlé adquirem cada vez mais a preços cada vez menores, como acontece há tempos no Sul de Minas e como está ocorrendo agora em Goiás, por exemplo. Isso quando não abandonam empreendimentos "pouco rentáveis" e deixam os prejuízos sociais para governos municipais que facilitaram sua vida, como o testemunha o fechamento da unidade fabril de
Três Corações.
São Lourenço - MG (
www.saolourenco-online.com.br)
Metas Mundiais
A atuação da Nestlé em São Lourenço faz tudo isso parecer brinquedo de criança. Em 1992, a Nestlé adquiriu o controle mundial da Perrier Vittel, até então dona do Parque das Águas e concessionária da exploração das suas águas minerais. Essa compra inscreveu-se na estratégia da empresa de tornar-se a maior engarrafadora de água de beber em todo o mundo, meta já atingida hoje, com 73 marcas em muitos países. No Brasil, a ofensiva está em andamento: a Nestlé disputa o segundo lugar com a Superágua, concessionária em Lambari, Caxambu, Cambuquira e Araxá. A aquisição da Perrier deu à Nestlé a propriedade do Parque das Águas e o direito de exploração das águas minerais existentes, resguardados os direitos da população e dos turistas de beneficiarem-se com as virtudes medicinais seculares dessas águas.
A partir daí, a empresa entendeu que a estratégia mundial relativa à água de beber deveria aplicar-se, no caso de São Lourenço, sobrepondo-se a conquista das suas metas no Brasil (investimentos de 50 milhões de dólares, construção de 7 novas fábricas, ênfase total no novo segmento de "águas adicionadas de sais") aos interesses da população da cidade. Os recursos oferecidos pelo Parque das Águas eram modestos: pequenas vazões, unidade industrial restrita, limitações de ordem legal à expansão das captações.
Mistérios das águas
Aqüífero significa depósito subterrâneo de água, às vezes acumulada durante muito tempo, caso do Aqüífero Guarani, o maior do mundo, formado há cerca de 220/140 milhões de anos, que jaz sob doze estados brasileiros além de partes de Uruguai, Paraguai e Argentina, e que aloja água suficiente para abastecer todo o Brasil por 2 mil anos sem renovação. Há aqüíferos fósseis e renováveis. Os fósseis são fechados como os de petróleo: tira-se a água e nada mais resta. Os renováveis são dinâmicos: sai água, e entra água de chuva, filtrada lentamente pelo solo e as rochas. A existência de vários tipos de águas em espaços restritos como o do Parque das Águas pressupõe um sistema delicadíssimo de composições rochosas e aqüíferos dentro de nichos poliminerais diversos. A água flui, em fios suficientes para o consumo, e se renova por processos ainda não bem decifrados pela ciência. Foi neste cenário cercado de imponderabilidades que a Nestlé plantou sua política predatória.
Continua...